terça-feira, 14 de junho de 2016

Viagem com Vânia


Diego Gangas

O ônibus se aproxima do ponto, para, abre as portas, e as pessoas que formavam pequena fila começam a entrar. Depois que a última entra me aproximo da porta e digo:

Oi, Vânia, tudo bem?
- Tudo! E você?
Tudo bem. Posso te acompanhar na sua rotina de trabalho?
- Pode, vamos.

O encontro já havia sido combinado no dia anterior, quando Vânia terminava a jornada de trabalho na Praça Rui Barbosa, no Centro de Curitiba, e se preparava para ir embora:

Moça, você é motorista de ônibus?
- Sou.
Eu estou fazendo uma reportagem sobre mulheres que trabalham dirigindo ônibus, posso conversar com você sobre a sua profissão?
- Pode, mas você vai ter que ir conversando comigo até aquele ponto porque eu tenho que pegar um ônibus que sai dez para a uma!

Olho no relógio, e são vinte para a uma da tarde.
Tudo bem, você pode me dizer por que decidiu trabalhar como motorista de ônibus?

- Porque é algo que me fascina! Amo carregar as pessoas e entregá-las com segurança...

É praticamente impossível tirar uma boa história de alguém em apenas dez minutos, mas lá fui eu caminhando ao lado de Vânia Costa Pereira tentando anotar suas respostas em um bloco de papel. Caminhada que foi suficiente para perceber o quanto aquela mulher era importante para a profissão que exerce, e o quanto a profissão era importante para ela. Sendo assim sugeri:

Então posso acompanhar a sua rotina de trabalho amanhã, para conversar melhor com você?
- Pode. Mas vem num horário bom, às 9h17 que é mais tranquilo.

No dia seguinte, pouco antes das 9h17, sou o primeiro da fila no ponto quando o ônibus Fazendinha se aproxima, e a rotina de trabalho da motorista de 39 anos se refaz, dessa vez comigo, para conhecer como é ter uma profissão que pode ser vista como masculina e ainda dominada pelos homens.

De acordo com Sindicato das Empresas de Transporte Urbano e Metropolitano de Passageiros de Curitiba e Região Metropolitana,  (Setransp), Curitiba e região tem atualmente 72 mulheres que trabalham como motorista no transporte coletivo, enquanto os homens somam 3.532.

No ônibus, Vânia passa protetor solar no rosto e começa e responder minhas perguntas, sem antes me avisar:

- Aí quando você chegar no terminal tem que passar pela catraca.

Ou seja, o passeio ao lado da motorista não sairia de graça.

Ontem você me falou sobre o seu prazer em dirigir, como é essa relação com os passageiros?

- Ah! A gente gosta de poder ajudar, faz o melhor que a gente pode, não é Gení?

Olho para trás e vejo a simpática cobradora, com sorriso tímido que balança a cabeça ao concordar com a colega.

- Ela é minha cobradora, diz Vânia.

Gení sai em vantagem nos números. Em Curitiba e região, 1.636 mulheres trabalham como cobradora, enquanto os homens são 1.696, o que não diminui em nada o preconceito que ainda existe com as mulheres nestas funções.

- Teve um caso com um passageiro. Ele deu com a mão, e quando viu que era uma mulher que estava dirigindo começou a fazer sinal que não queria mais entrar. Ou, o caso de alguém que me disse: moça, tive que dar um “corte” no cidadão na fila, porque ele disse que não queria entrar no ônibus porque quem estava dirigindo era uma mulher.

Sobre o preconceito por parte dos colegas de trabalho, a motorista conta que há motoristas que são muito gentis, mas outros acabam por dificultar o serviço:

- Tem motorista que não dá a vez para você ultrapassar, te olha com indiferença... Isso tem bastante.

E você acha que isso acontece por quê?

- Eu acho que eles pensam que a gente está ocupando o lugar deles. Um lugar que sempre foi deles. E se a gente está aqui é porque conquistamos isso. Nós conquistamos. Se nós temos os direitos nos dias atuais, é porque elas [as mulheres] lutaram e conseguiram.

Curitiba teve sua primeira mulher motorista em 2005, já se vão dez anos da presença feminina nesta profissão.

Enquanto me seguro no ferro do ônibus com uma mão e a outra tenho ocupada com o celular que grava a conversa, ouço atentamente a mulher que com encobre parte do rosto com seus óculos de sol, e que com seu discurso se mostra consciente e segura do papel da mulher e de seus direitos.

- Se a gente olhar para trás e ver que antes a mulher não podia votar... não podia usar saia...

De repente a conversa é interrompida por um senhor de chapéu panamá que entra no ônibus, estende o braço, e oferece uma bala à Vânia.

- Obrigada! Esse é meu passageiro fiel, ele sempre vai com a gente, comenta.

E as cantadas existem? Pergunto eu.

- Não! [responde enfática]. Não é o meu caso, eu não dou bola, até para não gerar comentário. A gente que trabalha como motorista e até como cobradora é mal vista. Aí tem quem olha como se a gente fosse diferente.

Vânia fala com a convicção e a experiência de quem trabalha há quase oito anos dirigindo ônibus. Está prestes a completar quatro anos em transporte coletivo pela Expresso Azul, tem outros quatro pela empresa Rimatur, além de mais quatro como cobradora.

Um som de apito indica que o ônibus vai entrar em funcionamento e as portas se fecham.

Posso continuar aqui? Pergunto, na entrada da porta dianteira.

- Você tem que vir para o lado, para eu poder ver o espelho, solicita.

Olhar para o espelho é importante não apenas quando estamos ao volante no trânsito. Olhar para o espelho é importante para não esquecermos quem somos, no que nos transformamos, e o que queremos ser. Viver em sociedade pede isso, que nos enxerguemos, e que possamos olhar o outro.

Diva Oliveira, 82, aposentada, não está no ônibus Fazendinha que Vânia conduz. Ela aguarda no ponto do Vila Rosinha, na Praça Rui Barbosa. É uma tarde ensolarada, uma das últimas do inverno de 2015.
Conversando com ela, pergunto o que acha de uma mulher ser motorista de ônibus.

- Hipernomal, mulher pode fazer tudo que o homem faz, responde com tranquilidade.
- Eu entrei no Rosinha [ônibus], e era uma mulher que estava dirigindo, eu acho que elas são mais cuidadosas.

Priscila Raposo, 21, recepcionista, também aguarda a mesma condução e encara o tema com naturalidade.

- Para mim é indiferente, é uma profissão como qualquer outra, só tem que ver se elas ganham o mesmo que os homens.

Vânia é levada por desafios. Já dirigiu caminhão, fez a “escolinha”, nome dado ao curso preparatório para conduzir os coletivos de Curitiba e região, pelo prazer de ter a realização de sentar, nem que fosse por uma semana, na cadeira de motorista.

Voz firme, segurança nas palavras, equilibra com desenvoltura a atenção entre a conversa o trânsito.

Nós temos uma mulher presidente e cada vez mais as mulheres estão em diferentes profissões, como é para você essa conquista de espaço?

- Ah, para mim é um privilégio. Cada mulher que sobe um degrau não importando qual a profissão, é uma vitória para todas. Sou a favor das mulheres em tudo, falo que eu fecho com elas em qualquer coisa que for diferente.

Passo a observar Vânia pelo retrovisor e ela prossegue:

- É uma vitória. Quantas mulheres não morreram para garantir os nossos direitos. Morreram na fábrica durante a revolução francesa... industrial... não lembro agora.

Não tem problema não se lembrar em que momento da história o fato aconteceu. O que importa é saber e reconhecer quem lutou pela liberdade que as mulheres têm hoje.
Em 1857, em Nova Iorque, operárias de uma fábrica de tecido fizeram uma grande greve para reivindicar melhores condições como redução de 16 para dez horas de trabalho e melhores salários como os dos homens. Para reprimir os protestos as operarias foram trancadas no local de trabalho e incendiadas.

Marlene Ferreira, 40, há três anos trabalha como motorista e também teve sua trajetória iniciada como cobradora. Faz a linha Independência/CIC, entre o terminal Fazendinha e a Cidade Industrial de Curitiba. É daquelas pessoas que conversa com sorriso estampado no rosto. Um sorriso heroico.

Marlene mora na Fazenda Rio Grande, região metropolitana de Curitiba. Sai às 3h20 da madrugada para começar a jornada às 4h57 e seguir até 12h50.

De respostas curtas, ela dispara alegremente às minhas perguntas:

Por que dirigir ônibus?

- Sempre gostei de dirigir.

E o que você mais gosta?

- De conhecer novas pessoas.

Indagada sobre as situações de preconceito:

- Hoje mesmo aconteceu. Não estava no ponto e um cara queria que eu parasse para ele. Me xingou de tudo quanto é nome!

E o que precisa para ser motorista?

- Precisa ser corajosa! Eu tenho 1,55m de altura, imagina tomar conta de um ônibus desse tamanho!?

Preocupada com os passageiros, Vânia sempre espera que o idoso entre com segurança no coletivo e que todos desçam de igual maneira. Tem com a colega Gení uma confiança que nem sempre se encontra em outras duplas de condutores e cobradores. Gení é considerada a amiga, a irmã menor.

- Quando a gente fecha a porta, fecha no sinal deles [cobradores]. Quando ela [Gení] dá o sinal para mim, eu nem olho, fecho na fé. Agora tem cobrador que quando dá o sinal, tem que olhar no espelho [retrovisor] para confirmar.

A cada parada me encolho para que os passageiros tenham espaço e passem pela roleta.

- Deixa sua mochila ali, diz Vânia para mim, indicando a parte da frente do veículo.

Sua preocupação e atenção é geral.

- Quando entra uma mulher com criança de colo eu espero ela sentar. Se ninguém der lugar eu pergunto: Gení, tem lugar pra ela sentar? Se ela não sentar eu não “puxo” o carro. Se para você com a mochila já é difícil se segurar, imagina uma mulher com criança ou bebê.

A prova dos nove acontece e, eis que surge uma senhora idosa. Vânia pergunta:

- Tem lugar para ela Gení?

A colega responde que sim.

Qual seu sentimento com todas essas pessoas que você transporta todos os dias?

- Um rapaz da empresa disse uma coisa: o médico estuda cinco anos para cuidar de uma vida, e a gente, quantas vidas não carrega? Imagina o tamanho da responsabilidade.

A personalidade e o envolvimento da motorista com o que faz me deixa pensando em quem é Vânia além da condutora que se mostra cordial.

Mãe de um jovem de 21 anos que também caminha para ser motorista, a moradora de Campo Largo não tem e não dirige carro, quem dirige é o namorado. A paixão está mesmo nos veículos grandes, o cuidado está nas pequenas coisas, na cordialidade, na atenção de seu trabalho, na rotina diária.

O ônibus chega ao seu destino, o terminal da Fazendinha. Pego minha mochila, agradeço Vânia e Gení e pago a passagem.


Vânia Costa Pereira em frente ao ônibus Fazendinha. Foto: Diego Gangas


Sou o último a descer. As portas do ônibus se fecham. E o sentimento que fica é de que as portas das oportunidades se abram para mais Vânias e mais Genis.

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